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Efeito oposto

Quando o assunto é compras públicas, a maioria das pessoas já inicia a conversa com muitos preconceitos. Devido aos episódios amplamente divulgados, faz-se uma associação direta com a corrupção, a ineficiência e o mau uso do dinheiro público. Mesmo em uma fase tão complexa quanto a que vivemos, onde boas compras salvam vidas, tivemos eventos […]

19 de julho de 2021 07:21
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Quando o assunto é compras públicas, a maioria das pessoas já inicia a conversa com muitos preconceitos. Devido aos episódios amplamente divulgados, faz-se uma associação direta com a corrupção, a ineficiência e o mau uso do dinheiro público. Mesmo em uma fase tão complexa quanto a que vivemos, onde boas compras salvam vidas, tivemos eventos lamentáveis com tentativas de enriquecimento ilícito, desvio de finalidade e uso político da prática. Era de se esperar que em itens essenciais, como a compra de medicamentos e aparelhos para a saúde, livros e merenda para a educação ou bens e serviços para as forças de segurança, houvesse mais dignidade nos agentes públicos e privados. Infelizmente, a ambição, por razões pessoais ou políticas, em alguns momentos, supera os interesses coletivos.

Ao contrário do que se possa imaginar pelo impacto das notícias, no entanto, a maioria dos servidores públicos é de pessoas de boa índole. Da mesma forma,  a maioria das empresas que fornecem para o governo é composta de empresários de boa-fé.  Claro que a impressão formada da população não é esta, afinal, somente entra em destaque aquilo que gera audiência. Penso ser pouco provável que uma notícia dizendo: “o órgão tal comprou 100 cadeiras e correu tudo bem” cause algum interesse midiático.

O assunto deveria ser muito mais amplamente debatido, uma vez que ao comprar o governo deveria pensar muito além de suprir as necessidades daquele órgão administrativo que está contratando. A compra pública precisaria ter como objetivo primordial o desenvolvimento da economia do país.

Recentemente dois dispositivos legais, a nova lei de licitações e o novo marco legal das startups, começaram a vigorar. Ambos trouxeram inovações em relação ao que tínhamos como normativo, mas ainda foram muito tímidos e, lamento fazer tal estimativa, nem as próprias melhorias serão utilizadas na sua integralidade.

Parte do problema é justamente o efeito do poder da opinião pública. Explico. Nenhum cidadão do bem quer que o dinheiro coletivo seja mal utilizado. Então, ao ver uma grande quantidade de escândalos na televisão, clama-se por controle e justiça. E assim está ocorrendo, os órgãos de controle possuem um papel vital na fiscalização, correção e moralização do uso dos recursos públicos. Infelizmente, tanto quanto a falta, o excesso de controle é extremamente pernicioso.

Aqueles compradores que são pessoas do bem – na opinião já expressa neste artigo, a grande maioria – estão pressionados a seguir ritos formais mesmo quando estes não se compatibilizam com a melhor compra. Apenas no intuito de aclarar melhor a afirmação, vou trazer um caso recente do qual minha empresa participou. Um Tribunal estava efetuando uma compra de licença de software internacional. Toda e qualquer pessoa envolvida em aquisições desta natureza sabe bem como funciona o processo. A fabricante internacional estabelece um preço em dólar para os distribuidores, os quais, por sua vez, fornecem um preço em real para as revendas e estas ofertam seus preços ao potencial cliente.

Para que o procedimento de compra avance, faz-se necessário um conjunto de ações, conhecidas como fase interna da licitação, dentre as quais é mandatório estabelecer o orçamento da compra. No presente caso, quando o Tribunal fez as cotações, o dólar estava na casa de R$ 4,50 reais. No momento da licitação, muito tempo depois, uma vez que houve atraso em função da COVID, o dólar encontrava-se acima de R$ 5,20. Mais de 10 participantes competiram no pregão eletrônico e ocorreu o esperado, mesmo após acirrada disputa, o preço do vencedor ficou acima do orçamento. Evidente que isto aconteceria pela variação cambial. O lógico, sensato e razoável a ser feito era algo absolutamente simples: corrigir o orçamento efetuado pela variação do dólar. Se este procedimento fosse observado, a licitação estaria dentro dos parâmetros de cotação efetuados e, portanto, poderia prosseguir com sucesso. Ocorre que se algum pregoeiro tomar tal ação, muito provavelmente, será interpelado pelos órgãos de controle e terá que prestar uma imensidade de informação. Muito provavelmente, seria advertido, afinal a opinião majoritária é que sempre há alguém querendo tirar vantagem.

Ao invés de ajustar o orçamento, o órgão simplesmente cancelou o procedimento, fez uma nova cotação de preços e republicou o edital. A disputa teve, novamente, mais de 10 participantes e o valor final ficou muito próximo daquele da licitação original. Gastou-se dinheiro público, tempo, recursos dos licitantes, mas, em compensação, o comprador ficou integralmente protegido do Controle. Seguiu estritamente à risca um procedimento burro, antieconômico, inefetivo e burocrático que causou prejuízo a todos, mas foi dormir sem a preocupação de ser abordado futuramente por suas ações.

Caso mais grave tem ocorrido na contratação de serviços de tecnologia da informação -TI. Tanto os órgãos de controle quanto aqueles normatizadores do Governo  Federal tiveram papel preponderante em avanços importantes que permitiram a ampliação e democratização dos fornecedores aos entes públicos. Conseguiram quebrar um modelo de contratação altamente prejudicial, baseado em alocação de pessoal e que agrupava as diversas áreas de prestação de serviços em um único e gigantesco contrato, para o qual a competição se restringia a poucas e conhecidas empresas.

Houve uma evolução de uma relação que prestigiava a incompetência – quanto pior for o funcionário e quanto menos ele produzir melhor para a empresa, posto que o pagamento é efetuado pela alocação – por um modelo que pagava por resultados. Em resumo, o governo passou a licitar um conjunto de serviços ou blocos de serviços e pagava apenas quando recebia efetivamente o produto construído pelos préstimos do contratado. A empresa, por sua vez, quanto mais eficiente fosse mais competitiva se tornava. Quanto melhor o funcionário alocado, melhor para todos. Um verdadeiro modelo ganha-ganha.

Infelizmente, como o modelo é mais difícil de se fiscalizar (contar pessoas é mais fácil do que medir resultados), alguns atores abusaram e se aproveitaram para gerar lucros excessivos por mecanismos não republicamos. E então, o que fizeram os órgãos de controle e entes normatizadores? Estão em busca de apurar e punir os contraventores, mas ao invés de aperfeiçoar o modelo para evitar desvios futuros, voltaram para o modo anterior de fixar perfis, salários e contar cabeças. Alegam que encontram uma fórmula ideal, na medida em que também impõe a medição de resultado, na prática é apenas o velho e ineficaz método de alocação de pessoal.

As empresas especializadas e de nicho pararam de ter vantagem competitiva, porque por melhor que seja a produção de sua equipe, cada pessoa é contada pelo governo apenas como uma pessoa. Já estava muito ruim, margens baixas, poucos resultados efetivos, tempo excessivo gasto com registros burocráticos, quando chegou a pandemia. Hoje o cenário é assustador. As demandas por transformação digital se ampliaram de forma significativa, portanto a necessidade por pessoal cresceu proporcionalmente, e as empresas descobriram que os profissionais de TI podem prestar serviços de casa. Os bons profissionais estão ganhando fortunas, em função do aquecimento global da procura, e os contratos com o governo, que passaram a estabelecer salários e contar cabeça, já não conseguem atraí-los. As empresas prestadoras de serviços estão vivendo grandes desafios e nenhum gestor público ousa repactuar os contratos para fazer os ajustes necessários, muito menos rever os parâmetros estabelecidos, mesmo sabendo da ampliação visível dos custos de mão de obra e a falência daquilo que foi proposto. Quem perde mais é a população que recebe um nível de atendimento digital muito inferior ao que merece.

O cenário, hoje marcado pelo excesso de controle, servidores públicos e empresários acuados, lembra-me uma passagem do extraordinário livro de Douglas Adams: “O mochileiro das galáxias”. Em um determinado momento, o protagonista usa a sua toalha para limpar o bico de uma garrafa e, ao invés do efeito esperado de higienizar o local,  o álcool contido no recipiente mata uma “promissora comunidade de microrganismos”.

Por Jeovani Salomão

Foto: Divulgação

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